Fim das atualizações

Já faz algum tempo que as atividades da SRUSP se encerraram por falta de colaboradores. Muitos dos membros fundadores terminaram seus cursos na USP ou simplesmente seguiram outros interesses e, infelizmente, não foram sendo substituidos por novos. Com as atividades encerradas, os canais de comunicação da sociedade também perderam sua razão de existir. Sendo assim, a partir de hoje este blog deixa de ser atualizado. O seu conteúdo no entanto continuará disponível como está.

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Blog Cético reúne blogueiros céticos e racionalistas. Confira!

Alguns dos nossos ex-membros começaram um novo projeto que com certeza irá interessar os leitores deste blog, o Blog Cético. Convidamos a todos a conhecer e seguir.

Agradecemos ao esforço de todos os membros que ajudaram a tornar realidade, mesmo que temporariamente, a sociedade racionalista USP. Provamos que o conceito é viável e assim, talvez em um futuro próximo, outros voltem a construir sobre as fundações que criamos.

Agradecemos também aos nossos leitores pelo suporte e crítica.

Vejo vocês no Blog Cético. Abraço!

A falsificação de dados e o intelectualismo científico

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Tempos atrás tivemos uma discussão na lista do Laboratório de Inflamação e Dor (LID), aqui da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), relacionada à retratação de 172 artigos por um pesquisador japonês, o atualmente infame Yoshitaka Fujii. Felizmente os artigos retratados de Fujii não eram de grande impacto, e até as revistas em que publicou não tinham um fator de impacto muito alto, talvez isso tenha permitido o desenrolar de quase duas décadas de atos falhos. Mas fica no ar o porque desse “laissez faire, laissez passer” científico.

Aparentemente o forjamento e a cópia descarada de dados cada vez se alastra mais e mais no meio acadêmico. Podemos citar o exemplo de um pesquisador/professor brasileiro, aqui mesmo de dentro da USP de Ribeirão Preto, que, tendo culpa ou não, sendo conivente ou não com o ocorrido, foi destituído do cargo. Evento esse que deixou também em maus lençóis a reitora da USP na época.

Mas voltando ao Fujii, de acordo com o relatório de Carlisle, dos 249 artigos publicados por Fujii, em 212 deles foram encontrados dados inventados e fabricados, como acusações de forjamento da administração de drogas a pacientes e nomes de coautores que nunca tiveram ciência de estarem filiados ao trabalho. Seu caso ficou classicamente conhecido como o autor mais retratado da história, passando até mesmo o infame Joachim Boldt (curiosamente também um anestesiologista) com 90 artigos retratados (além daquele clássico e bombástico fiasco homeopático de Jacques Benveniste e seu eterno caso com John Maddox, editor da Revista Nature na década de 1980, o qual implodiu – cientificamente falando – suas pesquisas sobre “ultradiluições” (vulgo homeopatia), deixando Benveniste ter o privilégio de receber 2 prêmios IgNobel pela sua fantástica capacidade de obter resultados que nunca existiram, e mesmo assim insistir no erro).

Mas antes de condenar o Fujii à danação científica eterna, acho que há algumas perguntas a serem respondidas. Li o artigo do Carlisle sabatinando a produção do Fujii. Só que antes de atermos à crítica científica pura, se procurarmos mais aprofundadamente podemos perceber que desde 1993 já existia a fabricação de dados, porém somente a partir de 2000 começaram a surgir críticas. Como uma carta ao editor da revista Anesthesia & Analgesia, feita por Kranke e colaboradores em 2000, em que os autores criticam os dados de Fujii por serem “incríveis”, inclusive, ironicamente, citando isso no primeiro parágrafo do editorial

With increasing amazement, we noticed that the results reported by Fujii et al. are incredibly nice and we became skeptical when we realized that side effects were almost always identical in all groups.”

E numa nova revisão sistemática, Kranke e colaboradores (2001) criticaram (educadamente) na conclusão da revisão que “os resultados gerais e as características de dose-resposta podem ter sido alterados significativamente por um único centro de domínio” (que, nesse caso, era o centro de pesquisa do Fujii).  Outros apelos foram feitos, porém os trabalhos do Fujii ainda continuaram a serem aceitos e publicados por diversar revistas.

E somente em 2012 (isso é, 12 anos após a publicação do artigo do Kranke em 2000, e muito tempo depois de 1993) é que a revista Anesthesia & Analgesia publicou um editorial sobre uma possível fraude nos artigos de Fujii em todos esses anos. A partir daí, uma longa lista criticando os artigos do Fujii foram publicados, porém alguns com um atraso de mais de uma década pós-publicação (Archives of Otolaryngology — Head & Neck Surgery,), até chegarmos aos seus mais de 100 artigos retratados (até o momento, 172).

Mas ainda faltam perguntas a serem respondidas:

 1) O que realmente levou Fujii a falsificar dados?

2) Fujii teve ajuda de outros ou é o único culpado pelas falsificações?

3) Por que as revistas não analisaram corretamente as críticas dos artigos anteriores de Fujii (ex: Kranke e cols., 2000)?

4) O que se ganhou com isso?

Corrijo qualquer argumento falho de alguém que queira culpar o Fujii de charlatanismo ou até má-fé ou negligência profissional até que essas perguntas sejam respondidas. A culpa não é somente do Fujii, são dos editores e, em maior ou menor grau, nossa. Pois fomos nós que facilitamos para que os artigos do Fujii fossem passados adiante. E com certeza muitos outros artigos passam ou passaram pelos nossos olhos, e ou não sabemos ou não queremos enxergar erros. Essa é a nossa meaculpa. Ficamos presos ao nosso cientificismo de gráficos e asteriscos e deixamos de lado nossa parte teórica e crítica somente nas salas de aulas e cursos de graduação.

No mundo competitivo de hoje, com todas as pressões sobre o pesquisador (financiamento, chefes, relatórios, dados, publicações, renome, concursos), tudo é válido até que se prove o contrário (levando-se também em conta a Teoria da Falseabilidade de Karl Popper).

E cito, por final, uma frase que vi num dos editoriais da Revista Science sobre o assunto:

“If you get caught, you get sent to the back of the line.  But if you don’t cheat, you don’t get to the front of the line.”

Espiritismo passando por ciência na revista Época

Em um estudo recente, uma técnica de imagem cerebral foi usada para investigar o cérebro de médiuns durante a psicografia. Os resultados (apenas preliminares) condizem com fatos já estabelecidos em outros estudos sobre expertise. Curiosamente, os autores sugerem que os resultados também ‘são consistentes com a noção de escrita (não consciente) automática e da alegação de que uma “fonte externa” estava planejando o conteúdo da escrita.’ Estariam os autores sugerindo que a fonte externa são espíritos?

Steve Novella fez uma análise (traduzida aqui) do estudo que é bem completa e com a qual estou de pleno acordo. Mas é em uma matéria da jornalista Denise Paraná na revista Época, com o título sugestivo ‘os avanços da ciência da alma’, que os autores afirmam definitivamente o que no estudo apenas sugerem, e vão além ao defender que a mente pode ser imaterial e independente do corpo.

A reportagem começa descrevendo o encontro da jornalista com os médiuns nos EUA, a biografia dos autores, os objetivos e motivação do estudo e outros detalhes de fundo. A interpretação ‘espírita’ do estudo, que no paper fica apenas subentendida, é agora exposta de maneira clara e promocional:

Surpreendentemente, durante a psicografia os cérebros ativaram menos as áreas relacionadas ao planejamento e à criatividade, embora tenham sido produzidos textos mais complexos do que aqueles escritos sem “interferência espiritual”. Para os cientistas, isso seria compatível com a hipótese que os médiuns defendem: a autoria das psicografias não seria deles, mas dos espíritos comunicantes.

Nenhuma tentativa de análise crítica é apresentada e essa interpretação é aceita sem discussão.

A reportagem segue por um detour propagandístico e acrítico pelo espiritismo. Como já é de praxe na mídia brasileira, a jornalista exalta e glorifica Chico Xavier:

Mineiro de família pobre, fala mansa e sorriso tímido, Chico Xavier recebeu apenas o ensino básico. Isso não o impediu de publicar mais de 400 livros, alguns em dez idiomas diferentes, cobrindo variados gêneros literários e amplas áreas do conhecimento. Ao final da vida, vendera cerca de 40 milhões de exemplares, cujos direitos autorais foram doados. Psicografou por sete décadas. Nenhum tipo de fraude foi comprovada.

Pelo menos uma fraude envolvendo Chico Xavier foi muito bem comprovada e documentada, a da médium Otília Diogo. Além desse detalhe, há também muitas razões para se duvidar das alegações de médiums como Chico Xavier. Se é verdade que um médium pode canalizar o espírito de um morto, por que nenhum médium jamais psicografou a prova de algum teorema matemático desconhecido? Por que sempre o material psicografado é vago ou alegadamente advém de autores de literatura cuja autenticação e avaliação são necessariamente subjetivas?

A seguir a jornalista cita vários nomes famosos dos séculos XIX e XX, alguns de cientistas, que aparentemente interessaram-se por mediunidade em algum momento de suas vidas:

“Se eu pudesse recomeçar minha vida, deixaria de lado tudo o que fiz, para estudar a paranormalidade.” Essa confissão de Sigmund Freud a seu biógrafo oficial, Ernest Jones, marca um dos capítulos pouco conhecidos da história do pensamento humano. […] Talvez menos gente saiba que Marie Curie, a primeira cientista a ganhar dois prêmios Nobel, e seu marido, Pierre Curie, também Nobel, dedicaram espaço em suas atribuladas agendas ao estudo de médiuns. […] Quem seria capaz de imaginar isso hoje?

Quase ninguém seria capaz de imaginar isso hoje exatamente pelo fato de que esses fenômenos foram investigados e descartados como fraude. Casos de mediunidade começaram a aparecer em 1848 após as irmãs Fox em New York terem alegado ser capazes de comunicarem-se com espíritos através de batidas em uma mesa. Trinta anos depois as irmãs admitiram ser tudo uma fraude: as batidas eram na verdade o som de estalos dos seus dedos dos pés embaixo da mesa. Nesse ínterim a novidade espalhou-se e alegações de mediunidade surgiram em muitos outros países. Várias personalidades foram persuadidas pelos feitos aparentemente extraordinários até que Harry Houdini (outro nome famoso mas que a jornalista esquece de citar) expôs a farsa pelo que realmente era: truques de magia de salão.

Ao contrário do que a reportagem dá a entender, não foram apenas alguns casos isolados de fraude que fizeram a ciência perder o interesse e sim a ausência, mesmo em meio a uma grande quantidade de alegações, de qualquer evidência de fenômenos mediúnicos reais.

A matéria continua com alegações aparentemente proferidas por cientistas:

Muita coisa não cabe dentro do discurso que prevalece hoje na ciência. Pesquisadores da área acreditam que a telepatia do médium com o consciente ou o inconsciente daquele que deseja uma comunicação espiritual não explica psicografias nas quais se revelam informações desconhecidas das pessoas que o procuram.

A afirmação de que médiuns são capazes de comunicação telepática é surpreendente e portanto necessita de forte evidência, não basta apenas dizer que ‘pesquisadores da área acreditam’. Quem são esses pesquisadores e onde estão os estudos?

Num fenômeno em que comprovadamente não houvesse fraude ou sugestão inconsciente, sobrariam apenas duas hipóteses: ou haveria a capacidade do médium de captar informações em outro espaço e tempo; ou existiria mesmo a capacidade de comunicação entre o médium e o espírito de um morto.

Como poderíamos comprovar a ausência de fraude ou sugestão inconsciente? Mesmo que fosse possível descartar todo tipo de truque conhecido sempre há a possibilidade do médium utilizar um truque novo completamente desconhecido. Ausência de evidência (de fraude) não é evidência de ausência (de fraude). Informações psicografadas podem ser obtidas de muitas, talvez infinitas, maneiras não-paranormais. Portanto não é verdade que sobrariam apenas hipóteses paranormais; é muito mais provável que algo bem normal esteja por trás de uma alegação mediúnica.

O pesquisador Alexander Moreira-Almeida, coautor do estudo e diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora, é o principal responsável por colocar o Brasil em destaque nessa área no cenário internacional. […] Ele afirma que a alma, ou como prefere dizer, a personalidade ou a mente, está intimamente ligada ao cérebro, mas pode ser algo além dele. Para esse psiquiatra fluminense, pesquisas sobre experiências espirituais, como a mediunidade, são importantes para entendermos a mente e testarmos a hipótese materialista de que a personalidade seja um simples produto do cérebro. Moreira-Almeida lembra que Galileu e Darwin só puderam revolucionar a ciência porque passaram a analisar fenômenos que antes não eram considerados. “O materialismo é uma hipótese, não é ainda um fato cientificamente comprovado, como muitos acreditam”, diz Moreira- Almeida.

A equação mente = alma não é levada a sério pela esmagadora maioria de neurocientistas por dois motivos, um empírico e outro filosófico. O motivo empírico é que não há evidência alguma de que exista alma ou espírito; todos os casos investigados de mediunidade não passaram de fraude e tampouco existe qualquer evidência neurológica da existência dessas entidades. Ao contrário, toda evidência mostra que a mente é um produto do cérebro. Pacientes que perderam partes do cérebro devido a derrames ou outros acidentes perdem também as funções pelas quais aquela área era responsável (embora em certas ocasiões o cérebro possa recuperar parte das funções perdidas recrutando áreas adjacentes). Estimulação elétrica ou magnética do cérebro, assim como a administração de certos compostos químicos, causam experiências consideradas como mentais. Nada disso precisaria acontecer fosse a mente independente do cérebro. O motivo filósofico diz respeito aos problemas do próprio conceito de alma como algo imaterial mas com existência própria. Adversários do materialismo precisam explicar em que sentido algo imaterial pode existir e como algo imaterial pode influenciar algo material.

A matéria acaba com um levantamento da opinião popular:

Dados do World Values Survey revelam que a maioria da população mundial acredita na vida após a morte. Em todo o planeta, um número expressivo de pessoas declara ter se sentido em contato com mortos […] Para a maioria da população, a visão materialista parece deixar um vazio atrás de si.

A jornalista parece estar sugerindo que apliquemos uma falácia lógica conhecida como apelo à massa: se muitos acreditam em X então X deve ser verdade. Não, obrigado.

Conclusão

Através de um raciocínio acrítico e falacioso, a reportagem dá a entender que 1) as alegações do espiritismo são convincentes e 2) a ciência está finalmente dedicando-se a estudar fenômenos espíritas.

Como vimos, o estudo publicado na Plos One não teve como objetivo demonstrar que a psicografia é de fato um fenômeno paranormal e nem mostra evidências para isso. No entanto, não só a jornalista como alguns dos autores do estudo alegam o contrário e vão ainda além ao sustentar uma versão do dualismo alma x corpo já há muito descartada pela neurociência moderna.

A matéria está mais para proselitismo espírita do que para jornalismo. Uma pena, pois todos nós perdemos quando a mídia confunde religião com ciência.