Arquivo mensal: agosto 2011

Fogo que arde sem se ver: uma reflexão sobre o incêndio na floresta da USP de Ribeirão Preto

Ontem a tarde uma fumaça escura pairava sobre o campus da USP de Ribeirão Preto. Todo aquele carbono, que irritava os olhos e as vias aéreas dos estudantes, professores, funcionários e curiosos, era, até aquela manhã, parte integrante de uma floresta de mais de 700.000 m² de extensão. O estrago foi devastador em todas as dimensões imagináveis. Pra começar, a área atingida passou de 430.000 m². Como se não bastasse, nessa área estava contido o único banco genético de mata mesófila semidecidual do Brasil.

Um banco genético é exatamente o que o nome sugere: um local onde se deposita o material genético dos organismos. Quanto maior a variabilidade genética, melhor. Existem duas razões principais pelas quais o material genético dos indivíduos de uma espécie pode ser depositado num banco genético: (1) porque a espécie é (ou tem potencial para ser) interessante economicamente para o ser humano ou (2) porque a espécie precisa ser conservada. No primeiro caso, é comum os bancos genéticos estarem associados à instituições de pesquisa em melhoramento genético, que utilizam o material lá depositado para conduzir seus experimentos. Já no segundo caso, o panorama é bem diferente.

Como sabemos a variabilidade genética de uma população é um fator fundamental para a sua sobrevivência em longo prazo. Quanto maior a variabilidade genética, maior a chance de que alguma dessas variantes seja resistente às mudanças ambientes que inevitavelmente acontecem quando pensamos numa escala geológica de tempo. E quando áreas de matas nativas são derrubadas para a construção de cidades ou para fins agro-pecuários, a variabilidade genética das populações vegetais e animais diminui junto com o tamanho da floresta.

Sendo assim, quando pensamos em reflorestar uma área nativa degradada, não adianta só aumentarmos o número de indivíduos das espécies de plantas, por que se todos os indivíduos tiverem a mesma matriz genética (isto é, se todos forem descendentes de um grupo muito pequeno), a menor variação ambiental poderá devastar a área novamente. O ideal é plantar sementes de árvores com matrizes genéticas diferentes, para que a variabilidade genética total da população da área reflorestada seja alta (pool gênico diversificado). Isso significa que não adianta pegar as sementes geradas pelas poucas árvores que restaram na área degradada e sair plantando que nem louco, pois isso resultará numa melhoria apenas “aparente” da situação daquele ambiente.

Dessa forma, a existência de bons bancos genéticos é absolutamente fundamental quando pensamos em reflorestamentos. A área florestal que estava em chamas ontem armazenava 45 espécies e tinha uma diversidade de 4000 progênies coletados em mais de 400 localidades diferentes. Quase duas décadas de investimento e pesquisa ali, pegando fogo. Como já foi dito, esse era o único banco genético de plantas de mata mesófila semidecidual no Brasil. Além de funcionar como banco genético, muita pesquisa acadêmica também era realizada nessa área, que também abrigava projetos de ensino e de extensão universitária.

Por cima disso tudo, há um fator agravante sério. Enquanto helicópteros voavam pra lá e pra cá carregando água pra tentar apagar o incêndio, causando alvoroço dentro da USP, fora dos muros da universidade parecia que nada estava acontecendo. Repórteres e jornalistas pareciam ter algo mais importante pra cobrir do que a perda de um valioso banco genético. Quando informado sobre o assunto, o principal jornal regional limitou-se a escrever que “Pacientes que aguardavam atendimento foram retirados às pressas do campus; pelo menos 30 hectares de floresta queimaram”.

Depois de uma noite de intensa movimentação sobre o assunto nas redes sociais, feita principalmente pelos alunos da Biologia, uma manhã com resquícios de fumaça. Ao invés de helicópteros, aves carniceiras sobrevoavam o local em busca de uma refeição fácil. O descaso da mídia fez com que os docentes entrassem em contato com as agências de notícias, quase que implorando para que fosse feita uma reportagem decente sobre o ocorrido. Com esse esforço, as notícias mais recentes (como as do iG, UOL e O Globo) citam o banco genético, mas não explicam para o leitor leigo a importância desses lugares.

O que acontece? Por que o câncer do Gianecchini é considerado uma tragédia enorme em todos os noticiários, mas a perda real de uma área florestal que funcionava como banco genético custa pra virar notícia? É possível que as pessoas de fato se interessem mais por celebridades do que por ciência ou meio ambiente, mas é claro que essa pergunta não tem uma resposta simples. No entanto, talvez fosse interessante pensar sobre isso porque, pelo que parece, tem um incêndio muito mais sério se alastrando por aí, e ele está queimando a curiosidade e a inquietude das pessoas, deixando apenas galhos secos de alienação e indiferença.

Resenha do Livro: O Ímpio, de Fábio Marton

Apresentação da obra:

Trata-se de uma auto-biografia de um garoto muito religioso provindo de família também muito religiosa (o avô era pastor, sem contar os parentes praticantes) que entra em conflito com os dilemas e “rituais” religiosos quando começa a pensar um pouco mais além da bíblia. Tudo num ambiente que vai do pastelão religioso até momento pesarosos e reflexivos.

Estrutura da obra:

A obra é dividida em 7 capítulos cronológicos, todos em primeira pessoa, além de adendos entre a passagem dos capítulos.

Análise crítica

Pode-se dividir cada capítulo em partes filosoficamente diferentes entre si. Iniciando-se do prólogo até o epílogo, nota-se o desenvolvimento do pensamento do autor ao longo dos problemas que vão surgindo em sua vida sendo um evangélico, como a adolescência e seus hormônios, o questionamento da morte e a ditadura do “porque é assim porque sempre foi assim”. O fluir do pensamento ao longo dos capítulos pode lembrar muito os diálogos filosóficos do Horácio, personagem da Turma da Mônica, devido às crises existenciais e, em parte, do saudosismo do tempo em que éramos inocentes enão percebíamos a própria hipocrisia.

Há uma constante tensão sobre o advento do medo da punição pela oniciência e onipresença divina, levando-nos ao motivo do “por que estou aqui ainda?” para momentos de rompimento parcial das tradições religiosas. Há várias passagens de diálogo crítico e cético, às vezes de caráter até irônico, até finalmente o rompimento religioso esperado. Pessoalmente, alguns capítulos são a aplicação prática de filosofias de pensadores modernos como Foulcault e Satre e, já da metade para o final do livro, Nietzsche e Russell. Curiosamente, quando li o prólogo de “O Ímpio”, lembrei-me da seguinte passagem de Cazuza, de Viriato Correa:

“Não me lembro qual a minha idade quando ficou decidido que, no ano seguinte, eu entraria na escola. Mas eu devia ser muito, muito pequeno. Tão pequenino que não pronunciava direito as palavras e ainda chupava o dedo e vestia roupinhas de menina. (…)

Dois motivos é que me deram vontade de estudar.
O primeiro deles – as calças. Desde que me entendi, tive a preocupação de ser homem e nunca me pude ajeitar nos vestidinhos rendados de menina. Sempre olhei com inveja os garotos mais taludos do que eu, não porque eles fossem maiores e gozassem regalias que os garotinhos não gozam, mas porque usavam calças.(…)

O segundo motivo é que o primeiro contato que tive com uma escola foi através de uma festa. E ficou-me na cabeça a idéia de que a escola era um lugar de alegria.”

Religiosos e não religiosos vão se identificar com partes e passagens, numa leitura dinâmica e agradável. As dúvidas compartilhadas pelo autor são às vezes simples, mas com certeza 10 em 10 crentes já se perguntaram uma vezinha só sobre os assuntos. O final do livro é esperado, porém o que vale é o caminho e a arguição envolvidos para se chegar ao final. O bom do livro não é o final, mas o meio, o raciocínio para compor um final já esperado.

PS: O problema, sem sombra de dúvidas, é a questão da capa, pois o religioso ou aquele ateu simpatizante por religiões não terá tanta simpatia pela capa de primeira olhada. Uma capa mais formal, neutra e que transmita algo menos turbulento ao leitor seria uma melhor pedida.

O ÍMPIO – O EVANGELHO DE UM ATEU

Autor Fábio Marton

Editora Leya

221 páginas divididas em 7 capítulos (ou versículos – há)

Louco ou Coisa Pior

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